A Polícia Militar brasileira é um modelo anacrônico de
segurança pública que favorece abordagens policiais violentas, com
desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão
Uma das heranças mais malditas que a ditadura militar nos
deixou é a dificuldade que os brasileiros têm de distinguir entre as
funções das nossas Forças de Segurança (polícias) e as das nossas Forças
Armadas (exército, marinha, aeronáutica). A diferença é muito simples:
as Forças de Segurança garantem a segurança interna do Estado, enquanto
as Forças Armadas garantem a segurança externa. Polícias reprimem
criminosos e forças armadas combatem exércitos estrangeiros nos casos de
guerra.
Diante das desmensuradas diferenças de funções existentes entre as
Forças de Segurança e as Forças Armadas, é natural que seus membros
recebam treinamento completamente diferente. Os integrantes das Forças
Armadas são treinados para enfrentar um inimigo externo em casos de
guerra. Nessas circunstâncias, tudo que se espera dos militares é que
matem os inimigos e protejam o território nacional. Na guerra, os
prisioneiros são uma exceção e a morte é a regra.
As polícias, por outro lado, só deveriam matar nos casos extremos de
legítima defesa própria ou de terceiro. Seu treinamento não é para
combater um inimigo, mas para neutralizar ações criminosas praticadas
por cidadãos brasileiros (ou por estrangeiros que estejam por aqui), que
deverão ser julgados por um poder próprio da República: o Judiciário.
Em suma: enquanto os exércitos são treinados para matar o inimigo,
polícias são treinadas para prender cidadãos. Diferença nada sutil, mas
que precisa sempre ser lembrada, pois muitas vezes é esquecida ou
simplesmente ignorada, como na intervenção no Complexo do Alemão na
cidade do Rio de Janeiro ou em tantas outras operações na qual o
exército tem sido convocado para combater civis brasileiros.
O militarismo se justifica pelas circunstâncias extremas de uma
guerra, quando a disciplina e a hierarquia militares são essenciais para
manter a coesão da tropa. O foco do treinamento militar é centrado na
obediência e na submissão, pois só com estas se convence um ser humano a
enfrentar um exército inimigo, mesmo em circunstâncias adversas, sem
abandonar o campo de batalha. Os recrutas são submetidos a
constrangimentos e humilhações que acabam por destituí-los de seus
próprios direitos fundamentais. E se o treinamento militar é capaz de
convencer um soldado a se deixar tratar como um objeto na mão de seu
comandante, é natural também que esse soldado trate seus inimigos como
objetos cujas vidas podem ser sacrificadas impunemente em nome da sua
bandeira.
A sociedade reclama do tratamento brutal da polícia, mas insiste em
dar treinamento militar aos policiais, reforçando neles, a todo momento,
os valores de disciplina e hierarquia, quando deveria ensiná-los a
importância do respeito ao Direito e à cidadania. Se um policial militar
foi condicionado a respeitar seus superiores sem contestá-los, como
exigir dele que não prenda por “desacato à autoridade” um civil que
“ousou” exigir seus direitos durante uma abordagem policial? Se queremos
uma polícia que trate suspeitos e criminosos como cidadãos, é preciso
que o policial também seja treinado e tratado como civil (que, ao pé da
letra, significa justamente ser cidadão).
O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu
número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove
vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas
exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S.
Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram
mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo
período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o
equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de
São Paulo”.Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil
habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante
significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada
exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros
fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o
treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por
boa parte desses homicídios.
Nossa Polícia Militar é uma distorção dos principais modelos de
polícia do mundo. Muitos países europeus possuem gendarmarias, que são
forças militares com funções de polícia no âmbito da população civil,
como a Gendarmerie Nationale na França, os Carabinieri na Itália, a
Guardia Civil na Espanha e a Guarda Nacional Republicana em Portugal. As
gendarmarias, porém, são bem diferentes da nossa Polícia Militar, a
começar pelo fato de serem nacionais, e não estaduais. Em geral, as
atribuições de policiamento das gendarmarias europeias se restringem a
áreas rurais, cabendo às polícias civis o policiamento, tanto ostensivo
como investigativo, das áreas urbanas, o que restringe bastante o âmbito
de atuação dos militares. As gendarmarias europeias também são polícias
de ciclo completo, isto é, realizam não só o policiamento ostensivo,
mas também são responsáveis pela investigação policial.
No Brasil, a Constituição da República estabeleceu no seu artigo 144
uma excêntrica divisão de tarefas, na qual cabe à Polícia Militar
realizar o policiamento ostensivo, enquanto resta à Polícia Civil a
investigação policial. Esta existência de duas polícias, por óbvio, não
só aumenta em muito os custos para os cofres públicos que precisam
manter uma dupla infraestrutura policial, mas também cria uma rivalidade
desnecessária entre os colegas policiais que seguem duas carreiras
completamente distintas. O jovem que deseja se tornar policial hoje
precisa optar de antemão entre seguir a carreira de policial ostensivo
(militar) ou investigativo (civil), criando um abismo entre cargos que
seriam visivelmente de uma mesma carreira.
Nos EUA, na Inglaterra e em outros países que adotam o sistema
anglo-saxão, as polícias são compostas exclusivamente por civis e são de
ciclo completo, isto é, o policial ingressa na carreira para realizar
funções de policiamento ostensivo e, com o passar do tempo, pode optar
pela progressão para os setores de investigação na mesma polícia. Para
que se tenha uma ideia de como esse sistema funciona, um policial no
Departamento de Polícia de Nova York (NYPD) ingressa na carreira como
agente policial (police officer) para exercer atividades de polícia
ostensiva (uniformizado), tais como responder chamadas, patrulhar,
perseguir criminosos etc. Depois de alguns anos, esse agente policial
pode postular sua progressão na carreira para o cargo de detetive
(detective) no qual passará a exercer funções investigativas e não mais
usará uniformes. A carreira segue com os cargos de sargento (sergeant),
que chefia outros policiais; de tenente (lieutenant), que coordena os
sargentos; e de capitão (captain), que comanda o que chamaríamos de
delegacia.
Apesar do que a semelhança dos nomes poderia sugerir, não se trata de
patentes, mas de cargos, pois todos são funcionários públicos civis.
Cada policial está subordinado apenas a seus superiores hierárquicos em
linha direta, assim como um escrivão judicial brasileiro está
subordinado ao juiz com o qual trabalha. Um agente policial
estadunidense não está subordinado de qualquer forma às ordens de um
capitão de uma unidade policial que não é a sua, assim como o escrivão
judicial brasileiro não deve qualquer obediência a juízes de outras
varas. Para se ter uma ideia da importância dessa diferença, basta
imaginar a situação difícil em que fica um policial militar brasileiro
ao parar, em uma blitz, um capitão a quem, para início de conversa, tem o
dever de prestar continência. A hierarquia militar acaba funcionando,
em casos como esse, como uma blindagem para os oficiais, em um nítido
prejuízo para o princípio republicano da igualdade de tratamento nos
serviços públicos.
As vantagens de uma polícia exclusivamente civil são muitas e, se
somadas, a unificação das polícias ostensiva e investigativa em uma
única corporação de ciclo completo só traz benefícios para os policiais,
em termos de uma carreira mais atrativa, e aos cidadãos, com um
policiamento único e mais funcional.
No Brasil, tramita no Senado da República a Proposta de Emenda à
Constituição nº 102/2011, de autoria do senador Blairo Maggi (PR/MT),
que, se aprovada, permitirá aos estados unificarem suas polícias em uma
única corporação civil de âmbito estadual, representando um avanço
imensurável na política de segurança pública brasileira, além de uma
melhor aplicação do dinheiro público, que não mais terá que sustentar
duas infraestruturas policiais distintas e, algumas vezes, até mesmo
concorrentes.
A unificação das polícias também possibilitaria uma carreira policial
bem mais racional do que a que temos hoje. O policiamento ostensivo é
bastante desgastante e é comum que, à medida que o policial militar
envelhece, ele acabe sendo designado para atividades que exijam menor
vigor físico. Como atualmente existem duas polícias e, portanto, duas
carreiras policiais distintas, os policiais militares acabam sendo
designados para tarefas internas, típicas de auxiliar administrativo,
mas permanecem recebendo a mesma remuneração de seus colegas que
arriscam suas vidas nas ruas. Com a unificação, ocorreria o que acontece
na maioria das polícias do mundo: ele seria promovido para o cargo de
detetive e sua experiência como policial ostensivo seria muito bem
aproveitada na fase de investigação. Para suprir os cargos
administrativos meramente burocráticos, bastaria fazer concursos para
auxiliares administrativos que requerem vocação, habilidades e
treinamento bem mais simples daqueles exigidos de um policial.
Por outro lado, os policiais civis que realizam o trabalho de
investigação atualmente são recrutados por meio de concursos públicos e
começam a exercer suas atividades investigativas sem nunca terem tido
experiência policial nas ruas. Com a unificação da polícia, o ingresso
se daria sempre para o cargo de policiamento ostensivo, no qual o
policial ganharia experiência e só então poderia ascender na carreira
para os cargos de investigação. Um modelo que privilegia a experiência
prática, e não o conhecimento técnico normalmente exigido em provas de
concursos.
Finalmente, a unificação das polícias acabaria também com os
julgamentos de policiais pela Justiça Militar. Pelo atual sistema, os
crimes praticados por policiais militares em serviço (exceto crimes
dolosos contra a vida de civis) são julgados não pelo juiz criminal
comum, mas pela Justiça Militar, em uma clara violação do princípio
republicano da isonomia. É como se as universidades federais tivessem
uma Justiça Universitária para julgar os crimes praticados por
professores durante as aulas; ou as indústrias tivessem uma Justiça
Industrial para julgar os crimes praticados por metalúrgicos em serviço.
Uma espécie de universo paralelo jurídico que só se explica pela força
política dos militares quando da promulgação da Constituição de 1988.
Desmilitarizar e unificar as polícias estaduais brasileiras é uma
necessidade urgente para que haja avanços reais na nossa política de
segurança pública. Vê-se muito destaque na mídia para projetos
legislativos que demagogicamente propõem o aumento de penas e outras
alterações nos nossos códigos Penal e de Processo Penal como panaceia
para o problema da criminalidade. Muito pouco se vê, porém, quanto a
propostas que visem a repensar a polícia brasileira.
Por Túlio Vianna