Criticadas por seu grau de violência e pela baixa eficácia, instituições formam policiais com vícios da ditadura militar. Governos insistem em soluções pontuais que sucumbem às antigas práticas de corrupção e corporativismo
Quem precisa de polícia? A pergunta carregada de indignação estava
entre os muitos e difusos pleitos das manifestações de 2013. A resposta é
óbvia, apesar de incômoda para as alas radicais que querem ‘mudar o
país’, sem dizer exatamente para onde. A todos – exceto aos bandidos –
interessa uma polícia presente, preparada, capaz de servir, intervir e
mediar conflitos que a sociedade não conseguiu equacionar por diálogo e
consenso. O uso da força, é claro, faz parte desse repertório de ações,
mas como recurso extremo.
Não é este o retrato das forças policiais Brasil afora. Tampouco
foram os manifestantes os primeiros a reivindicar mudanças nas
instituições – particularmente as militares. O relatório de 2014 da
organização Human Rights Watch, no capítulo dedicado ao Brasil, cita as
1.890 mortes atribuídas a policiais no ano de 2012 – dado fornecido pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Diz o relatório: “Nem todas as
mortes ocorridas em decorrência de ação policial resultam do uso
legítimo de força”. Separados os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro,
houve naquele ano, respectivamente, 165 e 362 homicídios cometidos por
agentes. O documento destaca como exemplo o caso do pedreiro Amarildo de
Souza, desaparecido desde 14 de julho do ano passado na favela da
Rocinha, no Rio. Vinte e cinco policiais militares foram denunciados
pelos crimes de tortura, assassinato, ocultação do cadáver e obstrução
da Justiça.
Há um desencontro histórico entre o que se quer da polícia e o modelo
que os governos mantêm nas instituições e na forja de novos policiais.
Apesar de graduados em épocas diferentes, são parecidíssimos, em sua
formação, os 79 PMs réus pelo massacre de 111 presos do Carandiru, em
1992, e os 25 policiais agora julgados no Rio de Janeiro pela morte de
Amarildo. Os agentes do Carandiru foram treinados entre as décadas de 70
e 80; os do Rio, em sua maioria, são egressos de turmas dos anos 2010,
dos bancos da academia dedicados a formar a nova polícia concebida pelo
secretário de Segurança de Estado, José Mariano Beltrame. Na avaliação
de especialistas em segurança pública ouvidos pelo site de VEJA,
mudanças pontuais, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) ou os
programas que trazem pequenas inovações, não são suficientes para
entregar à sociedade uma polícia livre de vícios e mais voltada para o
serviço ao cidadão do que para a guerra.
Militares
É a PM o alvo maior das denúncias de
abusos, corrupção, ineficiência e, até, por sua ausência. Afinal, na
divisão de competências estabelecida entre a polícia judiciária e a
ostensiva, coube aos homens e mulheres fardados a missão de travar o
corpo a corpo com a população, em situações que vão das operações de
trânsito à contenção de protestos.
A antropóloga Haydée Caruso, professora da UnB, pesquisou a formação
dos praças da Polícia Militar do Rio em trabalho de mestrado entre 2002 e
2004. Constatou que as principais instruções de procedimentos datavam
da década de 80. O que havia de “novo” eram manuais criados em 1983 pelo
coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, que comandou a instituição nos
anos 80 e é considerado o criador dos postos de policiamento
comunitário em favelas do Rio. As disciplinas que dominam os currículos
são as de ênfase jurídica e militar.
"As academias de hoje formam profissionais inseguros, que têm pouco
conhecimento sobre a realidade da rua e do que a população quer desse
policial. Rapidamente os conceitos novos são suprimidos pelo que dita a
prática dos veteranos. O treinamento formal, de certa forma, melhorou.
Mas não o suficiente para transformar os padrões de comportamento e a
relação que o agente estabelece com a população”, afirma Haydée.
A formação dos agentes é um reflexo da forma como foram concebidas as
instituições policiais, um problema bem anterior à ditadura militar. As
forças que hoje atuam nas cidades nasceram com o intuito de servir à
sociedade democrática. “Temos no Brasil uma cultura policial muito
arraigada, anterior até à ditadura militar. Nossa estrutura policial foi
concebida para finalidades não vinculadas à sociedade democrática, com a
polícia que caçava escravos, formada por jagunços e milícias com a
finalidade de cumprir interesses que não são os da cidadania, em um
tempo de desigualdade social muito grande”, explica o sociólogo Rodrigo
Azevedo, professor e pesquisador da PUC-RS, especializado em ciências
criminais.
A divisão de competências entre as instituições civis e militares
criou no Brasil um padrão que tem, ao mesmo tempo, sobreposições e
descontinuidade de competências. É a Polícia Militar que age na rua,
aborda o cidadão, prende suspeitos e conduz as “ocorrências”. Mas é a
Polícia Civil a encarregada de registrar, encarcerar, indiciar e
encaminhar os casos ao Ministério Público e, finalmente, à Justiça. Em
resumo, uma força detém os registros, os dados específicos e a
documentação sobre a criminalidade; e é outra corporação a encarregada
de prevenir o crime, atuar nos locais e momentos em que determinado
delito pode ocorrer. Na prática, essa fissura no processo também cria
disputa de poder, com os comandos das duas instituições disputando
controle, por exemplo, sobre as interceptações telefônicas e sobre
posições no Executivo – mais especificamente nas secretarias de
Segurança e nos ministérios ligados a essa área.
A fissura nesse procedimento alimenta uma corrente que defende a
desmilitarização da polícia. Coordenador do Centro de Estudos de
Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas
Gerais (Crisp/UFMG), o sociólogo Claudio Beato rejeita medidas abruptas e
radicais sobre as PMs. “A desmilitarização saiu das ruas muito
desfocada. De fato, temos problemas com o sistema no qual duas polícias
trabalham sobre a mesma coisa. A estrutura dupla não funciona. É preciso
criar uma polícia que funcione paralelamente às atuais, até uma
substituição completa. Seria algo como uma polícia metropolitana”,
defende Beato.
A desmilitarização, isoladamente, não é solução, indicam
especialistas ouvidos pelo site de VEJA. Afinal, as instituições civis
também são corroídas por corrupção, corporativismo e pressões políticas e
ideológicas. “A Polícia Civil é cartorial, burocrática, não investiga. O
delegado de polícia – um bacharel em Direito – é muito descolado do
processo de investigação. Lida com tiras que cumprem processos viciados
de uma rotina não necessariamente compatível com que diz essa chefia”,
exemplifica Azevedo.
Truculência
De forma geral, as polícias recebem
mais críticas por excessos do que por suas omissões. De acordo com
Luciane Patrício, superintendente de educação da Secretaria Estadual de
Segurança Pública do Rio de Janeiro, o currículo de formação dos praças
da PM foi reformulado em 2012, com mais foco em disciplinas técnicas e
conteúdo humanístico. Mas ela reconhece que as boas práticas ensinadas
na academia ainda precisam ser respaldadas por uma mudança na "estrutura
institucional". "Toda a estrutura institucional precisa caminhar nessa
mesma direção. Essa lógica de formação militar está em disputa com uma
lógica que defende um policial que preste serviço para a comunidade.
Ainda predomina uma doutrina militar, de que existe um inimigo público a
ser perseguido. Acredito, porém, numa superação da lógica cidadã, de
que a polícia é prestadora de serviço e não para fazer guerra", diz
Luciane.
As UPPs ainda são, com todos os defeitos, o programa que mais
apresentou resultados no Rio de Janeiro – um local onde o crescimento do
tráfico de drogas e das quadrilhas parecia algo impossível de combater.
Mas, como alertam os especialistas em segurança, como projeto pontual,
as unidades da polícia instaladas em favelas têm limitações. O pedido de
ajuda ao governo federal e às Forças Armadas, que possibilitam agora a
ocupação do Complexo da Maré, comprova a tese. As UPPs são vitais para
que o Estado do Rio não regrida, mas sozinhas não dão conta do problema.
Desde a ocupação do Morro Dona Marta, em Botafogo, em 2008, até o
estágio atual, o programa se expandiu e abarcou ao todo 37 favelas. Em
algumas delas, no entanto, o objetivo de “pacificar” ainda é algo
distante, e os PMs tornaram-se alvos de bandidos ou, como a “velha
polícia”, carecem de credibilidade. Com informações da revista Veja.
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